Vivemos em uma sociedade marcada pela pressa, pelo utilitarismo e por uma crescente incapacidade de perceber o valor intrínseco das pessoas, das coisas e dos acontecimentos. A frase “Há quem passe por uma floresta e só veja lenha para a sua fogueira” é um convite à reflexão profunda sobre o modo como enxergamos o mundo ao nosso redor. Essa frase, carregada de sentido filosófico, psicológico, espiritual e ético, revela uma perspectiva estreita da vida – uma visão utilitarista e autocentrada que reduz o outro e o ambiente a simples meios para fins pessoais.

A lógica da utilidade: tudo se torna instrumento

Na sociedade contemporânea, como já denunciava o filósofo Martin Heidegger, o ser humano caiu na “era da técnica”, onde tudo é visto como recurso, inclusive as relações humanas. O mundo se torna um “estoque” (Gestell) e as pessoas, ferramentas para objetivos individuais. Quem passa por uma floresta e só vê lenha, enxerga o mundo sob essa ótica técnica: não vê a floresta como um ecossistema vivo, belo, misterioso e cheio de sabedoria ancestral – vê apenas um amontoado de madeira para satisfazer uma necessidade imediata.

Essa forma de olhar não é nova. Desde o iluminismo, com a ênfase exacerbada na razão instrumental, o ser humano passou a ver a natureza e até os outros como algo a ser dominado e explorado. Como alertou Max Weber, esse processo levou à “desencantamento do mundo”, ou seja, à perda do sentido simbólico, espiritual e afetivo da realidade.

A psicologia do egoísmo funcional

Do ponto de vista psicológico, esse olhar empobrecido é alimentado por um ego inflado, nutrido por uma cultura de consumo e performance. Segundo Carl Gustav Jung, quando o indivíduo não faz contato com seu “Self” – o centro organizador da psique – ele se perde em projeções, medos e desejos que distorcem a percepção da realidade. Enxerga o outro como ameaça, concorrente ou oportunidade de ganho. A floresta, neste caso, torna-se símbolo do mundo interior não integrado: denso, desconhecido, mas também cheio de vida e possibilidades.

A psicóloga Madalena Freire, educadora e pesquisadora, diz que “quem só vê lenha na floresta, provavelmente só vê utilidade no outro e vazio em si mesmo”. Este vazio leva a uma busca incessante por preencher-se com o que é externo. Assim, a floresta deixa de ser contemplada; ela é usada, esvaziada e descartada.

Um convite à alteridade e à transcendência

Na contramão dessa visão utilitarista, o cristianismo ensina a ver o outro como “imagem e semelhança de Deus” (Gênesis 1:27), e não como meio para nossos interesses. Jesus Cristo foi o exemplo máximo de alguém que atravessou as florestas da vida enxergando nelas possibilidades de vida, cura, transformação e esperança – nunca apenas lenha para a sua fogueira.

O apóstolo Paulo adverte: “Nada façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem os outros superiores a vocês mesmos” (Filipenses 2:3). Isso implica sair do próprio eixo, deixar de ver o mundo a partir do próprio umbigo e reconhecer o valor do outro, mesmo quando este não serve aos nossos objetivos.

Emmanuel Lévinas, filósofo francês de origem judaica, propôs uma ética centrada na “face do outro”. Para ele, a ética começa quando o outro me interpela, me desconstrói, me tira do centro e exige responsabilidade. Quem vê o outro apenas como utilidade perdeu o horizonte da ética. E quem vê a floresta apenas como lenha, perdeu a capacidade de encantamento com o mundo.

Redescobrindo o olhar contemplativo

Recuperar o olhar contemplativo é redescobrir a beleza do simples, o mistério do cotidiano e a sacralidade da vida. O salmista diz: “Os céus proclamam a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos” (Salmo 19:1). Ou seja, há uma revelação divina na criação – e quem apenas vê lenha na floresta está espiritualmente cego para essa revelação.

Viktor Frankl, psiquiatra e sobrevivente do Holocausto, nos lembra que “tudo pode ser tirado de uma pessoa, exceto a última das liberdades humanas: escolher a atitude que se tem diante dos acontecimentos”. Ver uma floresta como lenha ou como vida é uma escolha interior. É uma questão de visão de mundo, de valores e de profundidade existencial.

Caminhos para a transformação

Como então educar um olhar mais profundo e sensível à beleza e à alteridade? Algumas atitudes podem ajudar nesse processo:

  1. Praticar a gratidão e a contemplação – parar, olhar, escutar, sentir… Não apenas passar pela vida, mas vivê-la com presença.
  2. Desenvolver empatia – colocar-se no lugar do outro, ouvir suas histórias, enxergar seus medos e sonhos.
  3. Buscar sabedoria espiritual – por meio da oração, da leitura bíblica e do cultivo da vida interior. Como diz Provérbios 4:7: “A sabedoria é a coisa principal; adquire, pois, a sabedoria; sim, com tudo o que possuis, adquire o entendimento.”
  4. Valorizar o coletivo acima do individualismo – o bem comum é a verdadeira fogueira que aquece sem destruir a floresta.

Conclusão: uma nova forma de ver

Quem só vê lenha está consumido pela fome da própria vaidade, pela necessidade de controle e pela ilusão da escassez. Mas quem vê vida, vê possibilidades, vê o Criador na criação, é aquele que já começou a se libertar da prisão do ego e da visão estreita.

Na sabedoria bíblica, está escrito: “Os olhos são a lâmpada do corpo. Se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz” (Mateus 6:22). Que tenhamos olhos bons para ver a floresta como espaço de vida, o outro como irmão, e o mundo como revelação de algo maior.

Porque a verdadeira fogueira que deve arder em nós não é a da utilidade, mas a do amor, da compaixão e da sabedoria.