Em uma era marcada pelo culto ao consumo, pela busca incessante por status, conforto e reconhecimento social, uma sutil inversão de valores tem se tornado cada vez mais comum — inclusive nos ambientes religiosos. Trata-se da prática de colocar o “mundo” como o fim último da existência, e Deus como um mero instrumento para alcançá-lo. Quando o mundo é o fim e Deus é o meio, estamos diante do que se pode chamar de uma espiritualidade materialista — um paradoxo que, embora contraditório, é cada vez mais real.
Deus como ferramenta: o utilitarismo da fé
Essa lógica distorcida está presente quando Deus é buscado apenas como um meio para resolver problemas financeiros, conquistar bens materiais, obter cura física ou garantir sucesso profissional. Em vez de adorá-lo por quem Ele é, muitos o buscam por aquilo que Ele pode “dar”. Isso transforma o relacionamento com o Criador numa transação utilitária, semelhante ao que o filósofo Immanuel Kant criticava ao falar do “imperativo hipotético” — uma moral baseada na utilidade das ações, e não em princípios éticos intrínsecos.
Na prática, o que deveria ser uma jornada de comunhão, obediência e transformação, torna-se um negócio espiritual. A religião passa a funcionar como um canal de barganha com o divino, no qual Deus é visto como uma espécie de "garçom celestial", pronto a atender pedidos de quem “paga” com orações, jejuns e dízimos.
A Bíblia, contudo, apresenta uma visão radicalmente diferente:
“Mas buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.” (Mateus 6:33, NVI)
Aqui, Jesus deixa claro que Deus deve ser o fim, e não o meio. O centro da vida cristã é o Reino de Deus, não o conforto terreno.
Materialismo disfarçado de piedade
O sociólogo Zygmunt Bauman, ao falar da “modernidade líquida”, observou que vivemos em uma sociedade onde as relações são descartáveis e as metas são constantemente substituídas por novos desejos. Essa lógica consumista também invadiu a espiritualidade: não se busca mais transformação interior, mas resultados práticos e imediatos. A fé torna-se “líquida”, adaptável aos interesses momentâneos do indivíduo.
Do ponto de vista psicológico, Carl Jung alertava que o ser humano moderno sofre de um “vazio de sentido”, o que o leva a buscar substitutos para o sagrado — inclusive dentro da religião. Quando a espiritualidade é instrumentalizada, ela serve apenas para preencher esse vazio com ilusões de poder e controle, e não com propósito verdadeiro.
Isso nos leva a uma forma sutil de idolatria:
“Porque onde estiver o seu tesouro, aí também estará o seu coração.” (Mateus 6:21, NVI)
Se o nosso tesouro está nas bênçãos e não no Abençoador, então Deus foi trocado pelo mundo. E essa é a essência do materialismo: viver como se o mundo fosse tudo o que importa.
A inversão dos valores eternos
No pensamento cristão autêntico, Deus é o Alfa e o Ômega (Apocalipse 22:13), ou seja, Ele é tanto o começo quanto o fim. Quando o colocamos apenas como meio para alcançar nossos fins terrenos, invertemos essa ordem. Como bem disse o teólogo C. S. Lewis:
“Coloque o Céu em primeiro lugar, e você terá a Terra ‘junta’. Coloque a Terra em primeiro lugar, e não terá nenhum dos dois.”
A verdadeira fé transforma os desejos humanos, não os confirma. Ela nos chama à renúncia, ao arrependimento, à metanoia — termo grego que significa “mudança de mente”. É um chamado a deixar de ver o mundo como finalidade e passar a viver para a glória de Deus.
O impacto social e espiritual dessa distorção
Do ponto de vista sociológico, essa inversão de valores contribui para o crescimento de uma espiritualidade egocêntrica e performática. Igrejas passam a competir por fiéis oferecendo "pacotes de bênçãos", e pastores tornam-se coachs da prosperidade. Não é raro ver comunidades religiosas inteiras organizadas em torno do que o indivíduo quer receber, não do que ele está disposto a entregar.
Essa é uma realidade que o apóstolo Paulo já advertia:
“Pois virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina; ao contrário, sentirão coceira nos ouvidos, segundo os seus próprios desejos, juntarão mestres para si mesmos.” (2 Timóteo 4:3, NVI)
Quando a fé é moldada pelos desejos humanos e não pela verdade revelada, ela se torna uma caricatura de si mesma — uma fé sem cruz, sem sacrifício, sem transformação.
Deus como fim: o caminho da verdadeira espiritualidade
O convite bíblico é para um caminho oposto:
“Negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.” (Marcos 8:34, NVI)
Aqui está o coração do Evangelho: Deus não é meio para nossos fins, Ele é o próprio fim da nossa existência. Como afirmou Agostinho de Hipona:
“Fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração enquanto não repousa em ti.”
Buscar a Deus como fim é deixar que Ele transforme nossos desejos, redirecione nossas prioridades e nos conduza a uma vida plena — não necessariamente rica em bens, mas abundante em significado. É fazer da vontade de Deus o norte, e do amor a Ele, o motivo de todas as nossas ações.
Conclusão: reordenando os afetos
O materialismo espiritual é um sintoma de uma fé adoecida, onde os afetos estão desordenados. Como escreveu Santo Tomás de Aquino, “a ordem do amor determina a ordem da alma”. Precisamos aprender a amar a Deus por quem Ele é, não por aquilo que Ele pode nos dar.
Que possamos fazer como o salmista:
“Quem mais eu tenho no céu? E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti.” (Salmo 73:25, NVI)
Neste mundo de desejos insaciáveis, que sejamos aqueles que redescobrem o prazer de buscar a Deus como fim último da nossa vida, e não apenas como um meio para alcançar o mundo. Pois, afinal, quando Deus é o fim e o mundo é o meio, então deixamos de ser materialistas — e passamos a ser discípulos.