Há uma sabedoria profunda na afirmação atribuída a Sócrates: “uma coisa se destrói pelo mal que lhe é próprio.” Essa proposição filosófica lança luz sobre a natureza do mal como algo intrínseco, que atua de dentro para fora, corroendo a essência daquilo que afeta. Assim como o alimento se deteriora pelo seu próprio apodrecimento e o ferro se destrói pela ferrugem que nele nasce, a alma humana também carrega dentro de si os elementos que podem conduzi-la à degradação — os vícios. No entanto, enquanto o apodrecimento destrói o alimento e a ferrugem aniquila o ferro, os vícios não têm o mesmo poder sobre a alma: eles não a destroem em sua substância, mas corrompem sua nobreza, sua dignidade e seu destino.
Neste artigo, analisaremos essa dinâmica do mal e da corrupção a partir de um olhar filosófico, psicológico, espiritual e bíblico, buscando compreender como o mal atua na constituição das coisas e especialmente na alma humana. Veremos que o verdadeiro campo de batalha do mal é o interior do ser humano, onde os vícios encontram morada. E, ao mesmo tempo, exploraremos o que nos diz a Bíblia, os filósofos, os psicólogos e sociólogos sobre como enfrentar e transcender esse mal.
1. A essência do mal nas coisas: apodrecimento, ferrugem e dissolução
Santo Agostinho, no livro Confissões, define o mal como privatio boni — a privação do bem. Não é uma substância por si só, mas a ausência da plenitude para a qual uma coisa foi criada. Um alimento apodrece não porque se tornou outra coisa, mas porque perdeu sua integridade. O ferro enferruja não por algo externo somente, mas por um processo químico que lhe é natural e intrínseco quando exposto à umidade — sua própria constituição permite que a ferrugem o destrua.
A ferrugem é ao ferro o que o apodrecimento é ao alimento: um mal que lhe é próprio, que nasce em suas entranhas e o corrói. Como escreveu o físico e filósofo francês Blaise Pascal: "A corrupção da melhor coisa é a pior de todas.” Esse mal é um processo de decadência que nasce daquilo que a coisa é, e por isso mesmo é o mais perigoso e inevitável.
2. A alma e os vícios: corrupção sem destruição
Diferente do alimento ou do ferro, a alma não pode ser destruída por seus males. Jesus mesmo afirmou:
"Não temam os que matam o corpo, mas não podem matar a alma." (Mateus 10:28, NVI).
A alma, em sua essência, é imortal. Os vícios — como a soberba, a avareza, a luxúria, a inveja, a gula, a ira e a preguiça — não a aniquilam, mas a desfiguram, obscurecem sua luz, desviam-na de sua finalidade.
Platão, discípulo de Sócrates, na obra A República, mostra que a alma possui três partes: a racional, a irascível e a concupiscente. Os vícios desordenam essas partes, fazendo com que o desejo governe sobre a razão. Quando a alma está dominada pelos vícios, ela perde seu equilíbrio, sua beleza e sua elevação, mas não sua existência.
O apóstolo Paulo descreve essa luta interna:
"Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer, esse continuo fazendo." (Romanos 7:19, NVI).
Essa é a realidade humana: uma alma que, mesmo ferida e corrompida, continua viva, consciente e, portanto, passível de arrependimento e redenção.
3. O olhar da psicologia e da sociologia: vícios como sintomas e desajustes
Na psicologia moderna, vícios não são apenas más inclinações morais, mas sintomas de desequilíbrios profundos. Carl Jung dizia que "aquilo que não enfrentamos em nosso interior acaba se manifestando como destino.” Em outras palavras, os vícios são manifestações de vazios, traumas, ansiedades não elaboradas. Eles nascem de dentro, como a ferrugem do ferro — e se não tratados, tomam conta da personalidade.
O sociólogo Émile Durkheim também observou que uma sociedade anômica, sem normas e sem coesão, favorece o crescimento dos vícios individuais. O mal que destrói o tecido social também nasce de dentro da estrutura social, de seus desequilíbrios e carências. Assim, o vício pessoal se liga a uma falência maior, cultural, espiritual, comunitária.
4. A alma ferida, mas redimível: o caminho da transformação
A boa notícia que a Bíblia nos oferece é que, embora os vícios corrompam, eles não são definitivos. O mal que nasce dentro pode ser combatido por forças igualmente internas: a fé, a virtude, o arrependimento, a renovação espiritual.
O Salmo 51 é um clamor profundo por essa transformação:
"Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável." (Salmo 51:10, NVI).
O salmista reconhece que o mal estava dentro de si, mas apela ao Deus que é capaz de restaurar o que foi corrompido.
O teólogo e psicólogo Viktor Frankl, sobrevivente do Holocausto, também acreditava que o ser humano sempre tem a liberdade interior de escolher o bem, mesmo em condições extremas. Ele escreve: "Tudo pode ser tirado de um homem, exceto uma coisa: a última das liberdades humanas – escolher sua atitude em qualquer circunstância."
5. Conclusão: O mal próprio e a esperança da regeneração
A afirmação de Sócrates permanece atual e poderosa: “uma coisa se destrói pelo mal que lhe é próprio.” Mas no caso da alma, esse mal — os vícios — não a destrói ontologicamente, e sim moralmente e espiritualmente. E nisso reside a esperança: o que não é destruído pode ser restaurado.
Enquanto o alimento e o ferro não podem voltar ao seu estado anterior depois de corrompidos, a alma humana pode. Deus é especialista em restaurações. Como afirmou o profeta Isaías:
"Ainda que os seus pecados sejam vermelhos como escarlate, eles se tornarão brancos como a neve." (Isaías 1:18, NVI).
A alma pode ser limpa da ferrugem dos vícios. E essa é a grande mensagem de transformação que une filosofia, psicologia, sociologia e fé: o mal pode nascer de dentro, mas a redenção também.