"O Poder de Notar o Que Sempre Esteve Diante de Nós". Em outras palavras: “Olhe novamente o poder de notar o que sempre esteve lá. ”Essas frases, simples e provocativas, nos convidam a um exercício de reconexão com a realidade, com o divino e com o nosso interior. Estamos cercados por estímulos, imagens, sons, pessoas e ideias. Mas, ironicamente, quanto mais nos expomos ao mundo, menos o percebemos. A isso damos o nome de habituação: um processo neuropsicológico em que deixamos de prestar atenção àquilo que se torna comum ou repetitivo. Assim, perdemos a sensibilidade ao cotidiano e nos afastamos da beleza das pequenas coisas, dos detalhes significativos e — muitas vezes — daquilo que é mais essencial à vida.

Essa tendência humana nos leva a viver no piloto automático, sem realmente estarmos presentes. “Olhe novamente o poder de notar o que sempre esteve lá” é um convite à atenção desperta, à redescoberta da presença e à reintegração da alma com o real. Neste artigo, exploramos o fenômeno da habituação à luz da Bíblia, da filosofia, da psicologia e das ciências sociais, buscando compreender como ela afeta nossa percepção, nossos relacionamentos e nossa espiritualidade — e, sobretudo, como podemos despertar novamente para o que importa.

1. O que é habituação? O invisível que se torna normal

A habituação é um processo de adaptação neural e psicológica. Ao sermos expostos repetidamente a um estímulo, nosso cérebro passa a ignorá-lo para preservar energia e priorizar o que é novo ou potencialmente ameaçador. Embora útil do ponto de vista evolutivo, esse mecanismo tem um custo existencial: deixamos de perceber aquilo que se torna rotineiro — mesmo que seja vital.

O psicólogo William James já alertava no final do século XIX: “A atenção é a posse pela mente, de forma clara e vívida, de um dentre vários objetos ou pensamentos possíveis. […] Ela implica retirada de algumas coisas para lidar efetivamente com outras”. A atenção é limitada; e a falta de renovação perceptiva faz com que o mundo à nossa volta desapareça aos poucos de nossa consciência.

É por isso que, muitas vezes, deixamos de ver a beleza de um pôr do sol, de valorizar um abraço, ou de perceber a presença de Deus na rotina.

2. A Bíblia e o risco de endurecer o coração

A Bíblia fala diversas vezes sobre o perigo de “endurecer o coração” — uma metáfora para a insensibilidade espiritual, emocional e moral causada pela repetição do pecado ou pelo descuido com a presença de Deus.

“Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais o vosso coração” (Salmos 95:7-8, NVI).

O texto sugere que a voz de Deus está sempre presente, mas nem sempre a percebemos. E essa surdez espiritual muitas vezes é causada pela habituação à graça, à bondade, aos sinais sutis do Eterno no ordinário. Deus, que se manifesta no “vento suave” (1 Reis 19:12), pode passar despercebido por corações acostumados apenas ao estrondo.

Jesus também advertia para a cegueira dos que, mesmo vendo, não enxergavam:

“Tendo olhos, não vedes? E tendo ouvidos, não ouvis?” (Marcos 8:18).

3. A filosofia do esquecimento: Heidegger, Simone Weil e o desvelar do real

O filósofo Martin Heidegger, ao falar sobre a existência autêntica, introduz a ideia de que o ser humano vive na maior parte do tempo em um estado de esquecimento do ser. Estamos absorvidos pela cotidianidade, pelos afazeres, pelas distrações, e deixamos de refletir sobre o que realmente somos e o sentido da vida. É preciso um choque — ou uma escolha deliberada — para voltar a “habitar poeticamente o mundo”, como dizia Hölderlin.

Simone Weil, filósofa e mística cristã, via na atenção o maior gesto de amor e de abertura ao divino. “A atenção é a forma mais rara e pura de generosidade.” Para ela, ver o outro de verdade, ver o mundo de verdade, é um ato de santidade. E isso exige vencer a habituação.

4. Psicologia e neurociência: entre o automático e o consciente

A neurociência mostra que o cérebro é uma máquina de economia. O sistema de ativação reticular filtra os estímulos sensoriais para não nos sobrecarregar. Assim, coisas que antes nos fascinavam passam despercebidas — inclusive pessoas.

O psicólogo Daniel Kahneman, Prêmio Nobel de Economia, distinguiu dois modos de funcionamento mental: o Sistema 1 (rápido, automático, intuitivo) e o Sistema 2 (lento, deliberado, racional). A habituação ocorre no Sistema 1. Para sair dela, precisamos acionar o Sistema 2: interromper o automático e trazer à consciência aquilo que se tornou invisível por excesso de familiaridade.

A terapia cognitivo-comportamental (TCC) também trabalha com o conceito de reestruturação cognitiva, ajudando o indivíduo a perceber padrões automáticos de pensamento e comportamento que foram naturalizados, mas que talvez estejam impedindo a felicidade, o afeto e o crescimento pessoal.

5. Sociologia e cultura: o anestesiamento coletivo

O sociólogo Zygmunt Bauman dizia que vivemos em uma “modernidade líquida”, marcada pela volatilidade, pela aceleração e pelo esquecimento. Nessa cultura, tudo é tão rápido e superficial que perdemos a capacidade de prestar atenção profunda nas coisas. O resultado é uma sociedade distraída, insatisfeita e ansiosa.

Pierre Bourdieu alertava para o “habitus”: padrões inconscientes que internalizamos pela repetição cultural. Eles moldam nossa percepção sem que percebamos. Assim, podemos estar presos a uma estrutura social e simbólica que nos impede de “ver de novo”.

6. Práticas para notar o que sempre esteve lá

Para romper com a habituação e recuperar a sensibilidade, algumas práticas são poderosas:

  • Atenção plena (mindfulness): prática de estar presente, observar o agora sem julgamento. Inspirada por tradições orientais, mas também coerente com o chamado bíblico de “vigiai” (Mateus 26:41).
  • Gratidão deliberada: listar diariamente três coisas pelas quais somos gratos. Isso muda o foco da mente e reativa a percepção do que temos, em vez do que falta.
  • Silêncio e contemplação: momentos sem estímulos ajudam a limpar o “ruído de fundo” e perceber a essência do que somos e do que nos cerca.
  • Olhar o outro como pela primeira vez: resgatar o encanto nas relações. Dizer “bom dia” com verdade, ouvir com atenção, abraçar com presença.
  • Estudo e meditação da Palavra de Deus: que nos convida a “não nos conformar com este mundo, mas a transformar-nos pela renovação da mente” (Romanos 12:2).

Reflexão Final: Notar é amar

Ver novamente é um ato de amor. A habituação é uma forma sutil de morte do espírito — a anestesia da alma diante da vida. Redescobrir o que sempre esteve lá é renascer. É abrir os olhos não apenas para fora, mas para dentro e para o alto.

O chamado de Deus, da filosofia, da psicologia e da arte é o mesmo: “Acorda, tu que dormes” (Efésios 5:14).

Voltar a ver é voltar a viver.

Chamadas finais para reflexão e partilha:

  • “A familiaridade gera desprezo.” (Provérbio popular)
  • “Tudo é milagre. O problema é que nos acostumamos com os milagres.” — G.K. Chesterton
  • “O essencial é invisível aos olhos, mas não deveria ser.” — Releitura de Antoine de Saint-Exupéry