Ao longo da história da humanidade, ritos e mitos caminharam juntos como pilares da cultura, da espiritualidade e da organização social. Mas o que significam exatamente essas palavras e como se relacionam? Neste artigo, exploramos a afirmação de que o rito reforça o mito, evidenciando que os rituais não são apenas expressões simbólicas do sagrado ou do social, mas verdadeiras encarnações de narrativas fundadoras que moldam a identidade individual e coletiva.
Com base em reflexões filosóficas, insights da psicologia e sociologia, e à luz das Escrituras Sagradas, investigaremos como os ritos fortalecem e perpetuam os mitos que sustentam nossas crenças mais profundas, seja no campo religioso, político, familiar ou cultural.
Mito e Rito: Conceituação e Relação
Mito, na tradição clássica e antropológica, não significa uma mentira ou uma fantasia infundada, como se popularizou no senso comum. Segundo Mircea Eliade, um dos maiores estudiosos do sagrado, o mito é uma história verdadeira que relata os acontecimentos primordiais que deram origem ao mundo ou a um modo de viver. Ele escreve:
“O mito narra uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso das origens.” (Eliade, O Sagrado e o Profano)
Já o rito é a dramatização simbólica do mito. É a ação repetida que atualiza o mito no presente, criando um elo entre o tempo histórico e o tempo sagrado. O rito “reencena” o mito, tornando-o vivo na experiência dos participantes.
O filósofo francês Paul Ricoeur observou que os ritos operam como “instrumentos hermenêuticos”, pois interpretam e traduzem os mitos em linguagem performática. Em outras palavras, o rito dá corpo ao mito e permite que ele seja experimentado sensorialmente.
A Dimensão Psicológica: O Poder do Simbólico
Para a psicologia analítica de Carl Gustav Jung, os mitos e ritos são expressões do inconsciente coletivo – estruturas arquetípicas universais presentes na psique humana. Jung afirmava:
“Os ritos tornam visível aquilo que é invisível na alma.”
Ou seja, os rituais funcionam como pontes entre a consciência e os conteúdos profundos da mente humana. Repetir um ritual – seja ele religioso, familiar ou cultural – significa reforçar os conteúdos simbólicos que estão na base da identidade do indivíduo e da comunidade.
Por exemplo, o rito do casamento não é apenas um evento social ou jurídico, mas uma representação simbólica do mito da união, da complementaridade e da perpetuação da vida e da aliança, temas encontrados desde o Gênesis:
“Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne.” (Gênesis 2:24 – NVI)
A Perspectiva Sociológica: O Rito como Coesão Social
Na sociologia, Émile Durkheim estudou o papel dos ritos religiosos na formação da coesão social. Ele via a religião como uma força coletiva que expressa os valores e normas de uma sociedade. Os ritos, nesse contexto, são mecanismos de reafirmação do pertencimento social:
“Os ritos são maneiras de manter o grupo unido, reforçando os laços sociais e a consciência coletiva.”
Ao participar de um rito, o indivíduo confirma sua adesão ao mito que dá sentido à vida em comunidade. Isso é visível, por exemplo, nas cerimônias patrióticas, nos ritos de passagem (como o batismo, a formatura ou o funeral), e nas práticas litúrgicas que repetem os gestos e palavras fundantes da fé cristã, como a Santa Ceia:
“Façam isto em memória de mim.” (Lucas 22:19 – NVI)
Jesus, ao instituir esse rito, não apenas estabeleceu um memorial, mas uma perpetuação simbólica do mito central do cristianismo: sua morte redentora e ressurreição. Assim, o rito reforça e mantém vivo o núcleo da fé cristã.
A Atualidade do Tema: Rituais Seculares e Novos Mitos
No mundo contemporâneo, marcado pelo avanço da secularização e do individualismo, muitos acreditam que os mitos e ritos perderam força. No entanto, como observa o sociólogo Clifford Geertz, toda cultura humana, mesmo a mais secular, se ancora em mitos e os reforça por meio de rituais simbólicos – mesmo que inconscientemente.
A cultura do consumo, por exemplo, está repleta de mitos modernos (o mito da felicidade via aquisição, o mito do sucesso pessoal) e rituais associados (compras em datas festivas, eventos corporativos, rituais de produtividade). A “Black Friday”, por exemplo, tornou-se um rito global que reforça o mito do consumo como caminho para a realização.
Essa constatação exige reflexão: quais mitos estamos reforçando em nossa vida cotidiana por meio dos ritos que praticamos? E, mais importante ainda, esses mitos nos conduzem à verdade, à liberdade e à vida plena, ou ao vazio, à alienação e à escravidão?
A Bíblia e o Rito que Liberta
A Bíblia está repleta de ritos que apontam para mitos fundantes. O Êxodo, por exemplo, é tanto um mito histórico quanto espiritual – e sua perpetuação ritual é ordenada por Deus:
“Comemorem esta cerimônia como decreto perpétuo para vocês e para seus descendentes.” (Êxodo 12:24 – NVI)
O cordeiro pascal, o pão sem fermento, o sangue nos umbrais das portas – todos esses elementos rituais são símbolos de um mito que moldou a identidade de Israel: a libertação do cativeiro pelo poder de Deus.
No Novo Testamento, Paulo interpreta esse rito à luz do Cristo:
“Cristo, nosso Cordeiro pascal, foi sacrificado por nós.” (1 Coríntios 5:7 – NVI)
A ceia, o batismo, o louvor congregacional, os jejuns e as orações são ritos que atualizam o mito da nova aliança, reafirmando nossa fé, nossa salvação e nosso pertencimento ao Corpo de Cristo.
Considerações Finais: Viver o Mito com Consciência
Entender que o rito reforça o mito é reconhecer o poder das ações simbólicas em nossa formação espiritual, social e psíquica. Ignorar essa verdade pode nos tornar reféns de mitos vazios e ritos sem sentido. Mas abraçar conscientemente os ritos que expressam a verdade do Evangelho, da fraternidade e do amor nos reconecta com o sagrado.
Como afirmou Victor Turner, antropólogo da religião:
“O rito é o drama onde o sagrado se manifesta.”
Que nossas vidas sejam rituais vivos de um mito verdadeiro, como exortou o apóstolo Paulo:
“Portanto, irmãos, rogo-lhes pelas misericórdias de Deus que se ofereçam em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus; este é o culto racional de vocês.” (Romanos 12:1 – NVI)
Assim, vivemos o rito que reforça o mito maior: Deus entre nós, Emmanuel, transformando cada gesto em eternidade.